Eu nunca tive um amigo negro
Nunca se discutiu tanto a questão racial no Brasil como na época da
aprovação da lei das cotas para negros em nossas universidades públicas.
Também foi esclarecedora a percepção de nossas limitações nesse
assunto. Subitamente, fomos brindados com as mais sofisticadas teorias
sobre a inexistência do conceito de "raça", que seriam muito bem vindas
caso não estivesse totalmente deturpadas pelo nosso "racismo cordial".
Ao
pensar em um suposto "conflito racial", algumas pessoas foram a público
denunciar a inconstitucionalidade, a aberração e a inutilidade de uma
política de cotas para negros, visto que não existe racismo no Brasil.
Daiane dos Santos, Neguinho da Beija-Flor e tantos outros foram
"branqueados" e alçados a sua genética condição europeia que lhes
excluiria de uma vaga especial pelo sistema de cotas. Ao lermos o livro
de ficção científica de Monteiro Lobato, "O presidente negro", somos
capazes de entender o que pode significar tais asserções e os aspectos
políticos nelas envolvidos. Branqueamos os nossos negros,
paradoxalmente, para mantê-los afastados de nós e de qualquer
compensação reparatória, mesmo que mínima.
O fato é que somos
racistas até a medula nesse país. Isso não significa que, em nossa
história, queimamos negros vivos como muitas vezes aconteceu nos Estados
Unidos na época da Klu-Klux-Klan ou que nossos negros fossem impedidos
de sentar ao lado de brancos nos ônibus. Isso é tecnicamente
incompatível com o nosso caráter cordial-lusitano, até mesmo porque é
desnecessário quando os negros "sabem o seu lugar". E onde é esse lugar a
qual designamos historicamente os nossos negros?
Basta pensar em
qualquer garoto (a) de classe média branco (a) no Brasil em relação ao
seu círculo próximo de amigos para se ter uma resposta muito rápida e
precisa. Quase ninguém tem ou teve qualquer amigo negro. Quando falo em
amigo não estou me referindo a conhecidos, mas sim, aqueles a quem
dividimos nossos sucessos, alegrias, fracassos ou angústias. Aqueles que
são convidados para dormir ou almoçar em nossas casas, bem como aqueles
que podem se tornar objeto de nosso interesse amoroso. Eu jamais tive
um amigo negro e tampouco alguma negra pela qual pudesse me apaixonar,
pelo simples motivo que não convivi com eles na minha infância e
adolescência como estudante em uma escola privada de Porto Alegre. Eles
simplesmente não existiam.
Quando veio ao Brasil em agosto de
1960, o filósofo Jean Paul Sartre percebeu com perplexidade a ausência
de negros em suas concorridas palestras. "Onde estão os negros?",
perguntou ele a certa altura para o constrangimento dos universitários
ali presentes. Alguém responderia a Sartre que não havia negros no
recinto tão somente por causa da falta de mérito dos mesmos em
conquistar um lugar no espaço universitário? Nesse período, o dramaturgo
Nelson Rodrigues também se perguntava: "Onde estão os negros do
Itamaraty? Procurei em vão um negro de casaca ou uma negra de vestido de
baile. O Itamaraty é uma paisagem sem negros."
Nelson publicou
em uma de suas "confissões" no jornal Última Hora em 26 de agosto de
1957 a seguinte observação acerca do teatrólogo e futuro senador da
República Abdias do Nascimento: "O que eu admiro em Abdias do Nascimento
é a sua irredutível consciência racial. Por outras palavras: trata-se
um negro que se apresenta como tal, que não se envergonha de sê-lo e que
esfrega a cor na cara de todo o mundo. (...) Eu já imagino o que vão
dizer três ou quatro críticos da nova geração: que o problema não existe
no Brasil. Mas existe. E só a obtusidade pétrea ou a má fé cínica
poderão negá-lo. Não caçamos pretos, no meio da rua, a pauladas, como
nos Estados Unidos. Mas fazemos o que talvez seja pior. A vida do preto
brasileiro é toda tecida de humilhações. Nós o tratamos com uma
cordialidade que é o disfarce pusilânime de um desprezo que fermenta em
nós, dia e noite. Acho o branco brasileiro um dos mais racistas do
mundo".
A exata localização de nossos negros me intriga. Essa
inquietação já me levou a dirigir o meu olhar na esperança de
encontrá-los, por exemplo, nas universidades em Porto Alegre. Munido
desse olhar específico, passei dias no campus do Valle da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul em busca de negros nas áreas comuns do
campus
e não os encontrei, salvo como funcionários da cantina. Em entidades
particulares a experiência se repetiu exatamente da mesma forma. Tudo
era uma branca e vasta paisagem, com poucas gradações de cor.
Intrigado
com tudo isso, estendi a minha observação aos lugares na noite a quais
frequento bares, restaurantes, cinemas e casas noturnas em geral. Eles
não estavam lá. Não existem negros ou grupos de negros se divertindo
junto com brancos ou estudando junto com brancos, salvo raras e honrosas
exceções. Essa situação se repete nas principais cidades do Brasil, não
sendo apenas um fenômeno típico de Porto Alegre.
Os negros estão
nas periferias, nas favelas, nas escolas públicas mais suburbanas, nos
presídios e em subempregos pelo país afora. É hipocrisia nossa
imaginarmo-nos, por um instante que for, que vivemos em uma sociedade
multicultural, inter-racial, ou qualquer coisa desse tipo. É urgente que
nossos negros comecem a desenvolver certa consciência racial e a
problematizar o lugar que ocupam dentro de uma sociedade racista como a
nossa. Que exijam serem reconhecidos para além dos estereótipos e que
ocupem os lugares reservados à elite branca. Que exijam a compensação
por séculos de escravidão e exclusão a que foram obrigados pelo
escravocrata branco. Se bem que, se a reação causada por um reles ensaio
de ação afirmativa se deu em um nível histriônico, poderíamos esperar
coisas piores de nossos alvos cidadãos em face de ações mais
contundentes.