Como o princípio da dignidade da pessoa humana afeta as relações jurídicas
Por
Vladimir Passos de Freitas
O
reconhecimento da dignidade da pessoa humana está no preâmbulo da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, na França. Mas
foi com as atrocidades praticadas no regime nazista, na primeira metade
do século passado, que se evidenciou a necessidade de ajustarem as
nações uma forma permanente de proteção.
Assim foi que a
Organização das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, editou a
Declaração Internacional de Direitos Humanos, dispondo no seu primeiro
artigo que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e
direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação
uns aos outros com espírito de fraternidade”.
Referida Declaração
foi traduzida em mais de 360 idiomas e gerou inúmeros Tratados e Leis.
Por exemplo, o “Primeiro Congresso das Nações Unidas sobre prevenção do
crime e tratamento de delinquentes”, realizado em Genébra, 1965, dispôs
sobre regras mínimas para o tratamento dos prisioneiros. Reconheceu a
estes também dignidade, vedando qualquer forma de tortura ou maus
tratos.
Nesta linha, a
Constituição
de 1988, no 1º, inc. III, dispôs que a República se fundamenta, entre
outros princípios, na dignidade da pessoa humana. A partir deste
reconhecimento constitucional, o referido princípio passou a fazer parte
de trabalhos doutrinários e invocado em ações judiciais.
No
entanto, em que pese a relevância do preceito, seu sentido amplo e
impreciso gera dúvidas sobre o seu alcance e aplicação. Em poucas
palavras, é fácil afirmar que toda pessoa tem direito a ter reconhecida
sua dignidade só por ser uma pessoa. Mas é difícil dizer onde e como tal
direito pode ser reconhecido.
A primeira indagação é sobre por
que os humanos são considerados dignos e os não humanos são deixados de
lado. A resposta, certamente, passa pela Bíblia, Antigo Testamento,
Gênesis, versículo 26: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que
ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os
animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se
arrastem sobre a terra". Aí está a fonte do antropocentrismo, a nossa
crença na superioridade do ser humano.
No entanto, por exemplo,
se fôssemos budistas, talvez tivéssemos dúvidas a respeito. Se o budismo
crê que os homens podem reencarnar-se em animais em outras vidas, fica
difícil justificar a razão de nossa superioridade.
Desta questão
passamos a outra, não menos relevante, qual seja, a cultura. Se para nós
a pena de morte é uma afronta ao princípio da dignidade humana, assim
não pensam os nossos vizinhos ao norte, na Guiana, aqui mesmo na América
do Sul e sem necessidade de dar-se o clássico exemplo dos Estados
Unidos. Outros exemplos poderiam ser dados, como a poligamia em
determinados países árabes ou a prática de matar gêmeos em algumas
tribos indígenas da Amazônia.
Se assim são as coisas, o primeiro
passo é partir da premissa de que temos uma visão de dignidade humana
que não é exatamente universal. E assim concluindo, podemos prosseguir
na análise desse difícil tema e de como ele interfere no Direito.
O
respeito à dignidade humana passa pelo respeito ao próximo, por
atitudes éticas. Bom seria que nem precisasse estar escrito na
Constituição, que houvesse consciência de que temos a obrigação de respeitar os que nos acompanham na caminhada.
Isto
às vezes pode ser fácil. Tratar com respeito e cordialidade um
empregado terceirizado que trabalhe em um tribunal é um passo simples e
importante. Ameniza relações sociais entre pessoas que se acham em
posições opostas na escala social, fato visível na distância entre a
remuneração que recebem, nas roupas que usam e na forma como são
tratados.
Em um passo seguinte, o tratamento vai além da
cordialidade. Transforma-se em ação. Por exemplo, as salas de aula de
uma Faculdade de Direito são limpas diariamente por uma ou duas
mulheres. O trabalho delas reflete-se no bem estar no local, beneficia a
todos. Entregar-lhes um dia uma caixa de chocolates acompanhada de
algumas palavras e uma salva de palmas é reconhecer-lhes a importância e
dar-lhes dignidade.
A terceira posição é a mais difícil:
reconhecer a dignidade dos que são diferentes de nós. Um bom exemplo
disto são os imigrantes que invadem os países economicamente bem
situados. E o Brasil, com todos os seus problemas, ainda atrai africanos
e haitianos. São pessoas diferentes na língua, na etnia, na cultura,
por vezes na religião e na cor. O diferente nos assusta. Mas ali está
alguém fragilizado, sofrendo pela distância de suas raízes, querendo
trabalho e sobrevivência. Dar-lhe compreensão, emprego ou pelo menos um
sorriso, é reconhecer-lhe dignidade.
Mas tudo isto só é fácil em
estudos acadêmicos. Na realidade da vida é preciso ponderar qual limite
de imigrantes pode adequar-se a quem os recebe. Aí é necessária uma
mescla de solidariedade com um exame técnico da viabilidade. Até para
que a população local não considere os imigrantes inimigos, o que
afetaria as relações humanas. Principalmente em época de altos índices
de desemprego, quando eles são vistos como concorrentes.
O trato
da matéria recomenda maturidade e o Brasil agora começa a dar seus
primeiros passos. O desafio é grande. Não é razoável que apenas um
Estado da Federação arque com os ônus, como ocorreu com o Acre
recentemente ao receber milhares de haitianos. E não é razoável, da
mesma forma, soluções como a dada pelo Governador daquele Estado que,
colocando 400 haitianos em um ônibus com destino a São Paulo, resolveu o
seu problema e não o dos imigrantes.
Veja-se, a título de
exemplo, a proposta de Bernard Kouchner para a França. O ex-ministro dos
Assuntos de Estrangeiros sugeriu que seu país adotasse uma quota anual
de 6.700 estrangeiros por ano (Le Figaro, 7.10.2015, p. 4).
Se na
área do Direito o princípio da dignidade humana tem reflexos sérios,
como sensibilizar os profissionais para o trato dos casos?
O
primeiro passo deve ser dado no curso de Direito. Seria oportuno que as
Faculdades de Direito promovessem visitas a locais onde a dignidade
humana pode ser mais afetada. Entre outros, presídios, asilos,
manicômios judiciários ou agrupamento de viciados. Estes não são lugares
muito sedutores, óbvio. Mas é importante que o futuro profissional do
Direito conheça e veja os dramas humanos, não fique apenas na leituras
de textos.
Há, ainda, um risco de radicalização nos crimes mais
revoltantes, como o estupro de menor ou o latrocínio com requintes de
perversidade. É instintiva a pergunta: essa pessoa tem alguma dignidade,
merece respeito? Vista pelo ato praticado, não. Mas como ser humano,
tem direito à ampla defesa e a uma pena não infamante. É dizer, pode e
deve ser condenada, com rigor se for o caso. Mas a ação do Estado para
aí.
Vejamos, agora, como os Tribunais vêm tratando os conflitos em que se invoca o princípio da dignidade.
O
STJ (REsp 1253921 RS 2011/0111914-0, j. 9.10.2012) colocou em liberdade
um traficante de drogas porque, doente, não estava recebendo tratamento
médico. Aí um campo a merecer cuidado, análise rigorosa. Todo preso no
Brasil que não seja pobre invoca necessidade de cuidados médicos. Como
raramente alguém depois dos 50 não tem nenhum problema físico, esta pode
ser uma porta aberta para a impunidade.
O TJ-DF vem entendendo
que ninguém pode, em razão de contrato celebrado, ver descontado de sua
remuneração percentual superior a 30%, sob pena de não ter o mínimo para
a sua subsistência (APC 20121010073004). Justa medida, pois leva quem
concede financiamento a atentar para a situação econômica do favorecido e
a não conceder empréstimos incobráveis.
O TJ-RJ (REEX
10143525220118190002, j. 11.4.2014), em caso de recurso a respeito de um
“aluguel social” fornecido pelo Município de Niterói a vítimas de
desastres ambientais, determinou à municipalidade que o concedesse a
determinada pessoa, rejeitando a teoria da “reserva do possível”.
Decisão arriscada, porque o Judiciário, examinando um caso concreto e
sem a visão do conjunto, não é o indicado para fixar as regras de
pagamento de verba excepcional e os municípios não podem dedicar todo
seu orçamento a apenas uma área, moradia.
O TJ-SP (APL
10000844520148260114, J. 31.3.2015), invocou o princípio da dignidade
para obrigar a concessionária de energia elétrica a promover a ligação
da luz de casa que se encontrava em zona de risco, próxima de fios de
alta tensão. Complexa decisão, pois a avaliação de risco é típico ato de
administração e a concessionária obedeceu a critérios técnicos
previstos em Regulamento. Em caso de acidente, poderá o juiz ser
civilmente responsabilizado?
O TJ-MS invocou o princípio para conceder a guarda provisória a crianças indígenas, sobrepondo-o a exigências do
ECA (AI 40135347920138120000, J. 7.4.2014).
Em
suma, o princípio da dignidade humana é, a um só tempo, importante e
complexo. Sua aplicação não deve ser transformada em mera concessão de
benefícios econômicos. E muito menos ser um “abre-te, Sésamo” para que o
juiz decida o que e como quiser.
Vladimir Passos de Freitas
é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi
corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR,
pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de
Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito
da" International Association for Courts Administration - IACA ", com
sede em Louisville (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.